domingo, 25 de agosto de 2013

"Estatística da miséria e miséria da estatística"

Reproduzimos aqui artigo de Gilson Dantas que desmistifica a propaganda do governo vende-pátria e do Banco Mundial que, ignorando a tenebrosa realidade vivida por milhões de brasileiros, apresenta a mentira de que vivemos num país de "elevado desenvolvimento humano", baseado na farsa do IDH (índice de desenvolvimento humano). O artigo mostra que o modelo econômico neoliberal somente aprofundou a condição do Brasil como semicolônia exportadora de matérias-primas e nos colocou ainda mais longe das possibilidades de solucionar os graves problemas estruturais pelos quais passamos.

Em síntese: a ilusão dos tecnocratas e sacerdotes das estatísticas da miséria é a de crer que aqueles que desfrutam do monopólio do poder econômico em algum momento irão ceder na democracia para os trabalhadores e na justiça distributiva. Reiterando: mesmo os especialistas que enxergam concentração de renda, terminam acreditando que essa burguesia colada inexoravelmente ao imperialismo pode ir além, na democracia liberal (ditadura do capital) e concluir a revolução burguesa jamais completada, atingindo, por fim, a reforma agrária e alguma equidade na distribuição de renda, algum mercado interno expandido. Bons em econometria e contabilidade da pobreza, em contabilizar uma árvore ou outra, são ainda melhores em ocultar a floresta do que na contabilidade das árvores: deixam de ver a economia internacional – da qual o Brasil é parte – como uma totalidade “governada” pela ditadura dos oligopólios financeiros, industriais e comerciais (em outro momento devidamente qualificado como imperialismo). [...] o grande mal causado pelas estatísticas que mistificam e ocultam o essencial – além, naturalmente de não ajudarem na compreensão do processo social em marcha – é o de que alimentam, na própria classe trabalhadora, seu voto de confiança no governo dos banqueiros e da patronal que está afundando o povo e a Nação, tudo em nome do “povo pobre” e com apoio da burocracia sindical associada ao governo (da CUT e da Força Sindical, por exemplo). [...]
por Gilson Dantas


"Pelas estatísticas, o lugar mais perigoso é a 

cama, pois é onde mais se morre". (D. Ruttnl)
Estatística da miséria: seu peculiar otimismo
No Brasil, a população pobre está melhor que antes. Seja qual for a força, ou o conteúdo de verdade dessa afirmação, sejam quais forem as evidências de ganhos sociais, existe uma maneira bem peculiar e frequente desse tipo de dado estatístico ser apresentado pelos economistas mais simpáticos ao governo e mesmo por outros nem tanto.

Deliberadamente ou não, os tecnocratas ou especialistas em dados sociais apresentam tais indicadores de uma forma tal e com uma matemática tão particular, que a realidade termina sendo representada em fatias, em pequenas fotografias coloridas que escondem ou mistificam uma realidade social cinzenta. No final de contas, a extensa e profunda desgraça social desaparece encoberta sob um manto de números esperançosos.

Intencional ou não, esse enfoque reforça a ilusão, a confiança e esperança política na melhoria desse quadro social absolutamente injusto e violento, resultado inevitável da ordem capitalista. E principalmente dão força à ficção política de que, e mantido o funcionamento capitalista no Brasil, pode-se chegar à justiça social ou à ruptura das relações de exploração no trabalho.

A recente apresentação, com estardalhaço, pela grande imprensa, de certas pesquisas do IBGE ou, depois, aquelas em torno do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), exemplificam isso. A miséria está diminuindo, os mais pobres já estão chegando às três refeições diárias, o estoque de pobreza é menor, o índice Gini (que mede desigualdade social) está apresentando melhora sustentada e acelerada, o desemprego se reduz, há menos fome, enfim, o Brasil está melhor. (Naturalmente, este discurso era mais forte antes da crise econômica atual).

O discurso é o da pobreza em extinção: os pobres consomem mais. E de que até existe menos desigualdade social já que há mais gente na faixa do meio salário mínimo. Não importa que haja uma crescente concentração de renda – que um ou outro articulista eventualmente reconhece que há e que os especialistas sabem que há –, o que interessa é que o Brasil está ficando um lugar melhor para os pobres.

E há discursos como o da jornalista chapa-branca (Tereza Cruvinel, O Globo 16/9/7), que elevam ainda mais o tom de celebração do governo Lula, já que, para ela o melhor dos mundos está chegando: “A modernidade estaria chegando de forma mais homogênea para todos. O acesso ao telefone fixo ou móvel, cresceu em todas as regiões, assim como o acesso ao computador e à internet [1]” (mesmo reconhecendo que Norte e NE continuam bem longe do resto do país); ela vê “recuperação de renda”, mais escolarização, maior número de universitários, melhora acentuada do índice Gini, sendo a metade mais pobre da população a mais beneficiada com o ganho de renda.

Sua base de dados é o Programa Nacional de Amostragem Domiciliar (PNAD) do IBGE (2007). Ela resume seu oba-oba em uma frase: “A vida dos brasileiros melhorou em todos os aspectos no ano passado”. Em uma palavra, a realidade no mundo dos pobres e explorados é mostrada de forma reconfortante.

Este discurso é completamente ideológico no seguinte sentido: pretende – declaradamente ou não – reforçar a tese de que, devagarinho, a história social dos mais pobres pode mudar, ou então promover a outra tese, igualmente ficcional, de que há solução para o Brasil preservando-se a classe dominante parasitária e cada dia mais rica – esta sim, a mais beneficiada com o ganho de renda – que exerce sua ditadura econômica sobre a grande massa trabalhadora, geradora de cada vez mais riqueza (concentrada em cada vez menos mãos).

Certamente, desmascarar esse discurso não significa dizer que os tecnocratas estão mentindo. Como toda operação ideológica, o discurso mostra parte da realidade, da realidade aparente, para ocultar o essencial: que os trabalhadores (empregados ou não) continuam perdendo, e a maioria vivendo privações, arrastando sua vida precária, e seu cotidiano de explorados, em meio à violência cotidiana para que os ricos e os grandes capitalistas fiquem cada vez mais ricos. Adiante voltaremos a este ponto.

Mas não podemos esquecer, desde já, que o Brasil, mesmo estando melhor que outros países, mesmo tendo melhor saneamento e menos estoque de pobreza degradante em termos, por exemplo, do bloco dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China), mas sua desigualdade é a maior dentre os países deste bloco. No Brasil a renda dos 20% mais ricos é quase 22 vezes maior que a renda dos 20 % mais pobres. Na China é apenas 12,2 vezes maior, na Rússia é 7,6 vezes e na Índia é de 5,6 vezes.

É inadequado – qualquer que seja a justificativa metodológica – considerar um dado ou outro, sem o contexto e sem a crítica. Falou-se no IDH, no entanto, o Brasil ficou atrás da Costa Rica, Cuba, México, Uruguai, Argentina e, segundo a própria ONU (Pnud) o Brasil possui indicadores de desenvolvimento humano inferiores em quase todas as dimensões aos da América Latina. Na matéria Índice que mede pobreza ainda está entre os piores da América Latina, o Globo, 28/11/07, mostra-se que no ranking de um outro indicador, o de Pobreza Humana, a posição do Brasil piorou (apesar da melhora no IDH).

O assessor especial do Pnud e especialista em desenvolvimento humano, Flávio Comim, lembra que uma simples comparação com os vizinhos da América Latina que já tenham alto IDH mostra que o Brasil fica atrás em, pelo menos, cinco quesitos: pobreza, desigualdade, saneamento, mortalidade infantil e mortalidade materna. “Se eu tivesse que dizer se o copo está meio cheio ou meio vazio no caso no Brasil, eu diria que ele está meio vazio”, afirmou Comim, lembrando que o índice de pobreza no Brasil é de 9,7 %, contra 6,8 % no México e 3,7 % no Chile. A economista Lena Lavinas acrescenta que o IDH é um índice eficaz para avaliações internacionais. Porém, explica pouco da realidade brasileira, marcada por grande informalidade, empregos precários e elevado déficit habitacional. “Achar que agora fazemos parte do pelotão de países dotados de bem-estar é um tamanho equívoco. Não devemos nos deixar impressionar com esse resultado – disse Lena” (O Globo, 28/11/07).

Há redução da extrema pobreza no nosso país, mas o Brasil continua um país essencialmente injusto e, como sua condição está enraizada no funcionamento capitalista e em sua crise, não está escrito em lugar algum que aquela redução seja sustentável. Ao contrário. A renda dos ricos cresceu três vezes mais que a dos pobres entre 2001 e 2004. Um jornalista chama acertadamente – e de forma indignada a atenção: esta questão não é de “interesse meramente acadêmico. O brasileiro tolerou tempo demais uma desigualdade obscena. Supor, equivocadamente, que ela está caindo, mesmo microscopicamente, só reforçaria a tolerância. E a obscenidade” (ROSSI: 2006). E não apenas no Brasil, já que se trata de um problema do sistema capitalista: 80 % da população mundial vive em países onde a desigualdade cresce. 

Mágica da estatística ou a estatística da árvore(As verdades do discurso ideológico)
O tecnocrata do governo provavelmente não mente quando diz – como faz o ministro do combate à fome, Patrus Ananias – que o “número de brasileiros que vivem com menos de um dólar por dia foi reduzido”, de 1992 para cá, quase pela metade (JB 14/10/07). Certamente ele não mente quando afirma, com ufanismo, que os participantes do “universo do Bolsa família fazem mais refeições por dia e adotam maior variedade de alimentos”.

Um determinado número de explorados e/ou despossuídos que vivia com menos de um dólar por dia (dois reais) passou a viver com dois, quem sabe um pouco mais que dois reais por dia. Um determinado número de famílias submetida à mais cruel pobreza e padecendo outros tipos de privações, ao aderir ao Bolsa-família (apelidado por alguns de bolsa-esmola), passou das duas para três “refeições” por dia, com mais “variedade de alimentos”. Nada disso é simplesmente invenção estatística. Prova disso a enxurrada de votos para Lula nas últimas eleições, a qual se não se explica apenas pelo Bolsa-família (existiu a bonança econômica das exportações etc), mas não se explica sem o Bolsa-família.

Mas a imagem que fica para o leitor desavisado – a maioria é desavisada, já que, além de ser mantida mal informada, a ocupação principal do seu tempo é sobreviver – em torno de questões como as de “refeições” e de “variedade” destacadas pelo ministro do Lula, é absolutamente distorcida, completamente ligada à sua realidade a respeito do que signifique “refeição” ou “variedade”; quem é bem informado e consegue ler a notícia, com certeza entende “refeição” bem diferente daqueles que pertencem a outro universo, o das privações crônicas.

Aqui, novamente, entra em ação uma lipoaspiração ideológica: o explorado saiu de um pão de má qualidade com café idem por dia, para ganhar, agora, um prato extra de mingau de farinha ou qualquer outra gororoba que nem o menos aquinhoado dos tecnocratas, dos reitores, dos jornalistas – e nem falar do ministro Ananias – jamais reconheceria como “refeição”, como “variedade” e, com certeza iria receber como desaforo ou desacato e jamais como comida de gente. E morreria de indignação cívica se tivesse que oferecer isso a algum filho seu como “alimento”. No fundo, muitos deles pensam: “excluídos”, conformem-se com a miséria, lembrem que poderia ser pior.


Portanto, o primeiro comentário tem a ver com o lado absolutamente grotesco e desumano daquilo que é “vendido” como avanço, melhora, modernidade ou qualquer outro nome. Estamos aqui falando de migalhas de um grande bolo. Migalhas daquele elemento fundamental que fica sempre oculto nesse contorsionismo de tecnocrata domesticado pela ordem: o essencial é o que foi roubado dos trabalhadores! O essencial – e sempre encoberto – é que a classe social a quem as migalhas são destinadas é, ao final de contas, a classe que produz toda a riqueza social! (E, portanto produz o grande bolo).



A situação de milhões de brasileiros é tão notoriamente crítica que até setores da própria imprensa conservadora se vêem obrigados a reconhecer que “a ninharia proporcionada pelo programa assistencial – tão severa e tão múltipla é a penúria da população da base da pirâmide social brasileira” – é recebida como 
dádiva, como grande benfeitoria (O Estado de São Paulo, 23/08/07, O Brasil do Bolsa-Família).

O que é compreensível: primeiro o sistema econômico cria a pobreza, o estado geral de abandono e exploração ao qual é relegado meio Brasil, depois vem com a esmola. Nas palavras de Conceição Soares da Silva, mulher de um pedreiro incapacitado, mãe de 5 filhos, moradora do paupérrimo Jardim Elisa Maria, no extremo norte paulistano: “se não fosse esse dinheirinho, a gente passaria fome”, diz ela referindo-se aos R$ 225 mensais que recebe, parte do Bolsa-Família (R$ 75), parte do Renda Mínima, da Prefeitura de São Paulo (O Estado de São Paulo, 23/08/07).

Portanto, a idéia que é ideológica e cuidadosamente escondida é a de que aquela migalha, que está sendo distribuída na esfera da política pública focal (à la Banco Mundial[2] e que o pobre percebe, na sua extrema indigência, com “melhoria” é parte ínfima de um bolo maior, de uma crescente massa de riquezas (mais-valia, diria Marx) que vem sendo voraz e selvagemente apropriada por uma camada social cada vez mais rica.

Como diria o presidente ex-operário, “nunca nesse país” tanta riqueza foi apropriada por tão poucos, “nunca nesse país” a sangria de riqueza para fora do Brasil foi tão colossal [3]. E a concentração de riqueza?
É grave e crônica. E boa parte dela fica oculta: “Minha desconfiança é que a desigualdade não está caindo do ponto de vista da renda global. Isso porque a taxa de juros permanece em patamar muito alto e é instrumento de concentração de renda”, diz Cláudio Dedecca, professor da Unicamp. Ele usa como argumento estatístico a comparação entre as variações do PIB (conjunto de bens e serviços produzidos no país), do PIB per capita (que divide o PIB pelo número de habitantes) e da renda de todos os trabalhos medida pela PNAD. Entre 2002 e 2006, o PIB subiu 13,2 %; o PIB per capita, 6,8 %; e a renda dos trabalhos, 3,7 %. “A riqueza cresceu mais que a renda do trabalho, o que faz com que, sozinha, a renda da PNAD não sirva como parâmetro de queda da desigualdade. Não podemos esquecer que a pesquisa capta só 40 % da renda total contida do PIB”, diz (MACHADO: 2008). Grifo nosso.

Isso se não se quiser mencionar outros indicadores. Não existe apenas o IDH. Existe o Índice de Exclusão Social, conhecido como IES, do economista Márcio Pochmann, que ao contrário do IDH inclui outros indicadores para medir a inclusão social, como pobreza, desemprego, desigualdade social, alfabetização, escolarização superior, homicídios e população infantil. Pois bem, de acordo com este índice, no ranking mundial de exclusão social, o Brasil está em 109º lugar, atrás de países como a Albânia (97º), Gana (102º) e Mongólia (106º).

É possível acrescentar o seguinte: como se pode pensar em incensar a sociometria do IDH em um país onde “cerca de 80% do esgoto produzido no país não recebe qualquer tipo de tratamento” (O Globo de 28/11/07)? Ou em outras palavras, e através de uma pergunta simples: vem ocorrendo alguma tendência, no Brasil, à desconcentração/distribuição histórica da renda e da riqueza? Absolutamente não.

Pochmann, presidente do IPEA do governo Lula, está entre os primeiros a reconhecer que renda e riqueza no Brasil continuam extremamente concentradas [4]. Em um momento de louvável lucidez, escrevendo para uma revista internacional, aquele mesmo técnico oferece os dados que permitem definir nosso país como a pátria da concentração de renda.

O Brasil caracteriza-se por construir um padrão extremamente concentrado de partição da renda e da riqueza. Os dados disponíveis e confiáveis indicam a persistência estrutural do jogo da distribuição pessoal da renda e da riqueza, mesmo quando ocorre o aparecimento de novos jogadores. Os 10% mais ricos da população impõem, historicamente, a ditadura da concentração, pois chegam a responder por quase 75% de toda riqueza nacional. Enquanto os 90% mais pobres ficam com apenas 25%. Independentemente dos padrões de desenvolvimento econômico pelos quais o Brasil passou, prevaleceu a estabilidade na desigualdade de repartição da renda e da riqueza entre seus habitantes.

Essa situação se agravou ainda mais com o fim do ciclo de industrialização nacional (1930-1980), quando a fatia correspondente à renda do trabalho na composição da renda nacional encolheu substancialmente. Do final da década de 1970 à metade da primeira década do século XXI, a participação do rendimento do trabalho na renda nacional caiu quase 12 pontos percentuais. Simultaneamente, cresceu a porcentagem relativa às formas de riqueza associadas aos proprietários (lucros, juros, aluguéis, renda da terra).

A concentração da renda e da riqueza é uma marca inalienável do Brasil. (...) Embora o país possua aproximadamente 60 milhões de famílias, 45% de toda a renda e a riqueza nacionais são apropriados por apenas 5 mil famílias extensas” (POCHMANN 2007).

Esta é a moldura social dentro da qual estão inseridas as melhorias de alguns indicadores sociais. Ou seja, o todo do qual um ou outro indicador é parte. A riqueza, como mostra este mesmo autor, não apenas cresceu como se concentrou.

Desde 1980, com o abandono do projeto de industrialização nacional, tem avançado no país o ciclo da financeirização da riqueza, que traz em seu bojo o retorno ao modelo primário-exportador de matérias-primas e produtos agropecuários (agronegócios). Da mesma forma que os ciclos econômicos anteriores, o padrão distributivo segue inalterado, a não ser pelo aprofundamento da desigualdade de renda e riqueza. Entre 1980 e 2000, quando o crescimento econômico foi pífio, se tornou geograficamente mais concentrada ainda a presença dos ricos no Brasil. Atualmente, somente quatro cidades (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte) concentram quase 80% de todas as famílias ricas do país. (POCHMANN 2007, grifo nosso).
 
Modelo econômico neoliberal somente aprofundou a condição do Brasil como
semicolônia exportadora de matérias-primas e produtos agrícolas

Nem a grande imprensa pôde esconder: Empresas multinacionais triplicam remessas de lucros no governo Lula (Folha de São Paulo On Line 16/10/07); a notícia compara o primeiro mandato Lula (2003-2006) com o segundo mandato FHC: neste governo, de FHC, de cada dez dólares que entraram no país dois foram remetidos para fora, enquanto que no primeiro mandato Lula, de cada dez, foram enviados para o exterior (como lucro das matrizes), seis dólares. Triplicou.

Com os bancos internacionais não foi diferente. Quem não ouviu falar nos lucros espetaculares do Itaú e do Bradesco? E no item concentração de riqueza e de renda a economia brasileira vem batendo recordes mundiais.
Por essa razão de fundo é que se torna absolutamente necessário contextualizar aquela discussão de que “a pobreza melhorou”. Se o mais miserável conseguiu sair de menos de 1 dólar por dia para 1 dólar ou algo parecido, se saiu do pingado e pão com manteiga para algo próximo disso, jamais se deve perder de vista que a reduzida camada social dos mais ricos e dos grandes capitalistas viu sua fatia na riqueza (produzida pelos trabalhadores é bom repetir) crescer escancaradamente, em escala não de 1 dólar mas de bilhões de dólares.

Os técnicos separam desigualdade de concentração de renda. Mas, mesmo sob esta ótica, se os índices de desigualdade “melhoraram” (sem qualquer auto-sustentabilidade, é preciso que se ressalte), os de concentração de riqueza se aceleraram muito mais. A transferência de renda dos pobres para os ricos é mais profunda e mais veloz do que as migalhas que são devolvidas aos trabalhadores e desempregados. É como a “política econômica do Titanic”: vida de rei de festas para primeira classe e ração para os escravos da casa de máquinas.

Examinemos um pouco mais a contextualização ou o processo político em que se dá esse debate.

Miséria da estatística e miséria da política
Será sempre necessário ressaltar, em uma polêmica como esta, que os indicadores sociais e a estatística social são necessários. São ferramentas úteis. Este não é o problema em pauta.

O problema central de toda econometria da miséria, de toda contabilidade que se limita a “fotografar” os fatos estatísticos, o aumento ou diminuição da pobreza absoluta e em que ponto se encontra a linha de pobreza ou o aumento de dois ou três reais na cesta familiar do trabalhador, é o do fatiamento e congelamento dos dados de tal forma que termina havendo uma “funcionalização” da pobreza. Operação puramente ideológica, como já foi dito, e que legitima os de cima.

Em outras palavras, como os autores dessas “fotografias da pobreza” habitualmente não se preocupam ativamente em contextualizar seus dados na crise concreta, real e dinâmica do capitalismo local e mundial, como não pretendem tomar conhecimento do conteúdo de classe no qual se apóia tal concentração de renda ou nível de pobreza, terminam levando água para o moinho ideológico dos políticos bem ou mal intencionados que acreditam em “outro”capitalismo ou até na “humanização” do capitalismo. Funcionam, em última instância, como otimistas e apologistas da ordem.

Para a questão da “funcionalização da pobreza” se pode ler o bem argumentado texto de Hélio Rodrigues que vem a seguir. Para uma avaliação política da miséria dessa estatística aqui serão formulados alguns argumentos.

O primeiro deles é o registro um tanto ou quanto óbvio de que discutir desigualdade social ou concentração de renda implica em situar o Brasil na economia internacional e também destacar que este processo se dá nos marcos de um país semi-colonial que funciona economicamente e em suas relações internas e internacionais como sócio menor do imperialismo (do capital financeiro internacional e seus monopólios). Ao não se efetuar essa contextualização, o resultado é que se reduz o foco da análise a um ponto que a torna estéril, vale dizer conveniente para a política da elite burguesa que manda na economia. E este vem a ser justamente o terreno da econometria da pobreza.

Em que país concreto se desenvolve a ampliação ou redução da pobreza? Qual a natureza da crise econômica atual ou do crescimento econômico conjuntural – como o que se deu até aqui no mandato Lula – e qual sua perspectiva como parte da crise mundial do capitalismo? São questões preliminares mesmo quando se analisa o sucesso ou os cenários para planos de “distribuição de renda” da magnitude do Bolsa-família ou de qualquer outro plano de mesmo perfil ou seja, cuja essência seja de geração de demanda de consumo (no caso, consumo popular) a partir do Estado.

E neste ponto as conclusões são fortemente contrárias a qualquer otimismo estratégico em relação ao “modelo” brasileiro e sua capacidade ou potencial no combate efetivo à pobreza. Senão vejamos.

O Brasil teve sua modesta taxa de crescimento econômico e de estabilidade econômica relativa nos últimos anos – nos anos Lula em especial – por conta seja das exportações que cresceram impulsionadas pelo dinamismo da economia chinesa (que neste momento começa a estar sob questão), mas também pela contínua atração de capitais que vieram para cá seduzidos pelos juros que o governo oferece aos seus papéis, dos mais altos do mundo, ao mesmo tempo atraídos pela valorização da moeda (completamente artificial e insustentável no médio prazo) e também pelo espaço de investimentos aberto com as privatizações, fusões e entreguismos de todo tipo por parte da dupla FHC-Lula. E também de facilidades oferecidas para a especulação e ganhos do capital que vive de crédito, de juros.

Um dos resultados macro-econômicos mais graves do Brasil em sua inserção capitalista à economia internacional, e que mais tornaram a economia brasileira não apenas dependente do capital financeiro internacional, mas também muito vulnerável, vem sendo o boom da dívida interna.

Os tecnocratas do governo procuram ocultar a gravidade desta bomba-relógio, tratam de dissimular o processo no qual parte da dívida externa converteu-se em interna e esta já alcançou tamanho semelhante ao do próprio PIB brasileiro e não pára de crescer. Parte determinante do orçamento público está comprometida com pagamento desta dívida pública.

Nessa dinâmica (de capitais entrando e especulando com a dívida, contra a moeda, com patrimônio público doado, com facilidades para explorar a força de trabalho por aqui etc) se assentou a concentração de renda ou o chamado efeito riqueza que gerou camadas sociais de alto consumo. E que fez crescer uma parte da chamada classe média.

A pergunta que pode ser feita a partir daqui é simples: tais taxas de entrada de capitais, tais taxas de crescimento econômico e a ampliação do consumo da chamada classe média alta traduziram-se em algum boom produtivo, em alguma retomada dos investimentos produtivos à altura desse crescimento de consumo? A resposta é não.

Ao efeito riqueza resultante das exportações que cresceram, da especulação idem, da geração de mais consumo dos ricos, não correspondeu uma onda importante de investimentos na produção, em fábricas e empregos (os empregos que mais cresceram foram os precários e informais).

Outra pergunta que pode ser feita: se é verdade que, lado a lado com o crescente consumo dos ricos, veio o programa Bolsa-família do Lula, assim como foram elevados certos gastos com o assistencialismo em geral, se é verdade, portanto, que a demanda de consumo tomado como um todo, expandiu-se, é válido indagar: tal expansão correspondeu a algum salto nos investimentos geradores de emprego formal e de produção de mercadorias? Ou, formulando a mesma pergunta de outra maneira: o capitalismo mostrou mais saúde com a mencionada expansão da demanda ou, ao contrário, ampliou seu funcionamento parasitário, de cassino, de especulação e ganhos financeiros? Qualquer escolar sabe a resposta.

No entanto, os econometristas da miséria raramente discutem a explicação, raramente tiram as conclusões desta constatação. Ou seja, mesmo quando o governo incentivou o consumo – com seu assistencialismo ou até com o aumento parcial do salário mínimo – e mesmo quando o consumo dos ricos chegou a crescer muito, os grandes investidores “preferiram” especular.

Evidentemente não é uma “preferência” pura e simples. É muito mais o retrato do parasitismo de uma burguesia (e não há distinção aqui entre “produtiva” e “não-produtiva”) que vai onde há melhores taxas de lucro. E estas taxas – este ponto é crucial para que se entenda todo o processo – não estão nem na fabricação de produtos para a clientela do Bolsa-família e nem em qualquer outra esfera relevante da produção.

A produção capitalista está em crise – à exceção de alguns nichos de mão de obra super-explorada –, em crise global que se arrasta há décadas e, portanto, a fuga para a frente, para os ganhos nas bolhas da especulação se deve a essa incapacidade, de uma maneira geral, em desenvolver as forças produtivas. Como sistema. Este é, aliás, o elemento que está explodindo na crise atual mundial, tantas vezes adiada.

É preciso não esquecer que os próprios Estados Unidos, maior economia do mundo, funcionaram como locomotiva mundial na década passada usando o “método” ou padrão econômico de promover artificialmente o consumo (portanto, não através da elevação da renda, mas da promoção do crédito ao consumo). Por sua natureza artificial, este tipo de crescimento inchou uma bolha, duas bolhas, finalmente uma grande bolha que está explodindo aos olhos de todos e arrastando o conjunto da economia capitalista para formas importantes de recessão e, talvez, depressão.

Em outras palavras, o argumento que está sendo desenvolvido aqui – e que se aplica plenamente ao Brasil – é o de que a burguesia não se move por mais ou menos “demanda” e sim por taxa de lucro. E a burguesia local, de natureza absolutamente parasitária e servil, tem procurado seus ganhos principalmente na mesma esfera em que seu sócio maior, e imperialista também a busca: especulação. Para além de qualquer consumo maior – pobre ou rico – a burguesia centrou seus investimentos e sua aposta de ganhos altos na esfera financeira como se viu no exemplo da Sadia e da Votorantim, cujo capital estava mais comprometido com especulação do que com produção de frangos ou cimento. E agora a própria Embraer, que andou especulando também.

Outra questão. Quando se fala em famílias mais ricas, em burguesia, no Brasil, é importante que se leve em conta o seguinte: existe um bloco burguês de poder onde grandes bancos locais, grandes empresas do agronegócio ou de outras áreas da indústria, comércio e serviços funcionam como sócios menores do imperialismo. Sócios-vassalos. Dessa forma foi que o crescimento econômico recente fortaleceu o setor imperialista que domina a economia no Brasil e, ao mesmo tempo, o papel do nosso país como semi-colônia exportadora de matérias-primas e mercadorias industriais de baixo valor agregado. (A relativa convergência política dentro do bloco de poder econômico dominante teve a ver com o fato de que quase todos eles lucraram muito no crescimento econômico, situação que, tendencialmente não se manterá nesta etapa recessiva da economia mundial que se abre; e também por isso a base burguesa de apoio ao Lula começa a rachar, a dividir-se politicamente). Em síntese há elementos processuais e de classe que ficam ocultos ou não são devidamente contextualizados pelos que manejam as estatísticas da pobreza.

E o primeiro e fundamental deles é o de que a crise ou o funcionamento econômico do nosso país, mesmo com a bonança recente, se dá em meio a tensões e contradições de uma economia capitalista semicolonial dirigida por uma burguesia que não pode ser mais do que sócia menor do grande capital imperialista. Burguesia que, por sua natureza parasitária e vassala não tem como absorver – e nem capitanear - qualquer reforma social importante, por menor que seja. Não se pode exigir e nem esperar isso dela. Ela é, historicamente, impotente.

E é por essa razão que o governo Lula, com todo o apoio popular que conta, não vai além de uma política subserviente ao grande capital imperialista (que inclui a manutenção de tropas de ocupação no Haiti e a explosão da dívida interna) com o qual compromete o mais importante do orçamento público ao mesmo tempo em que dirige uma estrutura econômica que irá estourar sobre a população trabalhadora diante de qualquer fuga importante de capitais. (Os mesmos capitais que só ficam por aqui por conta dos juros siderais que Lula oferece – com dinheiro público – e com os quais sustenta uma moeda, o real, artificialmente valorizada e a astronômica dívida interna).

A ilusão que vigora ente aqueles que, a partir de cálculos de maior ou menor estoque de pobreza no Brasil de Lula, pensam ser possível um outro “modelo” social com este mesmo capitalismo – seja por que meio institucional seja – tem tudo a ver, portanto, com a crença, declarada ou não, de que combate à pobreza pode ignorar dívida interna ou dívida externa monumentais e que combate à pobreza pode ser compatível com pagamento da dívida.

Também tem a ver com a ilusão de que combate à pobreza pode ser feito sem enfrentamento da relação de submissão e vassalagem da burguesia local ao imperialismo.

Ou de que combate à pobreza pode ser estrategicamente desenvolvido através do estímulo à demanda sem alterar as relações de classe dominante, que configuram um Estado semicolonial e segundo as quais o que vale é garantir altas taxas de lucro para o grande capital, mesmo que a economia brasileira seja reprimarizada (ganhe nova ênfase na exportação de produtos primários), que tenha seu patrimônio público devastado (estatais entregues a preço de nada) e sua força de trabalho escravizada, explorada a preço de África para que a burguesia viva seus padrões novaiorquinos e tenha seus ganhos milionários na Bolsa.

Esta não é uma questão apenas da “conjuntura Lula”: nos anos 70 e 80 essa elite burguesa local ganhou horrores fazendo crescer o endividamento externo e operando como parceiro nativo daquela negociata; nos anos no novo endividamento (renegociação da dívida externa via Plano Brady) vieram os gigantescos ganhos bilionários através do processo de internalização da dívida externa em dívida interna e ancoragem da moeda local no dólar. Em seguida, acumularam mais riqueza e capital com a farra das privatizações, da entrega de recursos naturais, da ciranda financeira dos juros altos e da moeda artificialmente valorizada.

Em todo esse processo, os lucros do sócio menor alavancaram a concentração de renda – dentre as maiores do mundo -, em todo esse processo não tiveram a menor “inclinação” para um “choque de capitalismo” que investe e amplia a produção industrial e o mercado interno, em todo esse processo aprofundou-se a dependência da economia em relação à finança internacional, a capitais que são eufemicamente conhecidos como capitais abutre, hot money, ao imperialismo. Historicamente não há tal “inclinação”.

Portanto, uma grande lição histórica disso tudo é a de que a burguesia local jamais deixou de operar segundo a lógica da vassalagem semicolonial. E ao longo desses anos só cresceu a vulnerabilidade externa do Brasil; já foi argumentado: uma fuga de capitais imperialistas, por exemplo, colocaria rapidamente na pauta a desvalorização do real, a escalada da inflação, derretendo ganhos tão destacados pelos tecnocratas do governo como o da “redução da pobreza absoluta”.

Como analisar a concentração de renda, portanto, descontextualizada deste processo vivo, levando – inadvertidamente ou não – a uma ilusão de que se pode combater à pobreza preservando as relações e os interesses do enclave imperialista e da burguesia nativa colonizada que dirige nossa economia?

Portanto, a crítica que aqui está sendo feita às abordagens correntes de melhora ou recuperação da pobreza tem a ver com o fatiamento que fazem da realidade ou sua tentativa de analisar renda dos trabalhadores ou estoque de pobreza – como costumam dizer – sem localizar o Brasil dentro da crise capitalista global, sem juntar pobreza e endividamento público, pobreza e grande empresariado nacional impermeável a qualquer reforma, além da impotência de políticas públicas de aumento da “demanda” nos marcos capitalistas.

A miséria da estatística da pobreza tem, portanto, a ver com a miséria de sua análise política. Tem a ver com suas ilusões de que possa existir qualquer independência política por parte daquele grande empresariado nativo – ou da economia tal como ela está conformada aqui: dependente do capital imperialista – para que possa vir a adotar um combate à pobreza que vá além das aparências, das migalhas ou dos ganhos sociais sem sustentabilidade.

Esta é a ilusão que acompanha o debate da pobreza ou de fome desde o sociólogo Betinho [5] com seu tão incensado programa contra a fome até todos os programas focais promovidos pelo Banco Mundial – o Bolsa-família é apenas um deles – todos eles comprometidos, politicamente, com a tentativa de neutralizar, a partir do Estado, possíveis insatisfações e rebeliões populares protagonizadas pela massa incalculável de indigentes e desempregados que o capitalismo cria todos os dias, todas as horas e que não há otimismo estatístico que consiga esconder ou mistificar por muito tempo [6].

As mágicas da estatística: os vendedores de ilusões
O governo Lula inegavelmente expandiu empregos, aplicou verbas no Bolsa-família e aumentou o salário mínimo, além de criar certo número de vagas universitárias com o Prouni. Em grande medida sua popularidade vem daí, de setores sociais que dependem, para sobreviver de ajuda do governo. Nenhuma contabilidade da pobreza e desigualdade deve ocultar tais elementos da realidade. No entanto, retirá-los do contexto, não explicá-los (que significa e que conteúdo tem o aumento do número de empregados, por exemplo?) ou utilizá-los para criar ilusões sobre a natureza e a perspectiva da política de “combate à pobreza” deste regime este é o grande ponto fraco dos economistas e estatísticos sociais.

Não percebem ou não querem perceber que acreditar nesse sistema e acreditar na sustentabilidade econômica de uma ou outra concessão é oferecer a cobertura ideológica a um governo que, utilizando sua popularidade, vem promovendo ataques às conquistas trabalhistas e previdenciárias dos trabalhadores e tende, com a crise mundial, a aprofundar a exploração e as privações sociais. O que só revela seu caráter de classe.

Portanto não se pode abstrair essa moldura política e social de classe, sem a qual qualquer avaliação de um dado estatístico fica esvaziada do essencial. Por outro lado é interessante não deixar de tocar no problema da mágica ou da dança dos números estatísticos. Jamais será demasiado reiterar, que os índices que medem “melhoria” social carregam, por definição (ou por um tipo de estratagema basicamente estatístico), um caráter obscuro. Obscuro, do ponto de vista aritmético e do ponto de vista social (mistificador e obsceno, como dirão alguns).

O índice Gini, por exemplo, que tem a ver com avaliação de desigualdade, considera como o mais pobre (ou como seu teto inferior de cálculo) a pessoa que vive com ¼ de dólar por dia. Se aumenta o número dos que saem da renda inferior a ¼ de dólar por dia para ¼ de dólar por dia, fica registrada uma melhora social, o país está debelando a pobreza. Por que? Porque saiu de 0,25 dólar por dia para 0,27 ou 0,29 dólar por dia.

E o já mencionado IDH? Em novembro de 2007, a grande imprensa noticiou com destaque e até estardalhaço que o Brasil agora estava “entre os melhores” (Correio Braziliense, 28/11/07) no ranking social, tinha aumentado seu Índice de Desenvolvimento Humano e agora passava a ser um país “de alto desenvolvimento humano”.

A superficialidade dessas constatações fica estampada no próprio fato de que parte da grande imprensa e do governo entram, imediatamente, em regime de fanfarra. Virou uma festa, uma pajelança. Ora, tamanha celebração por tão pouco, leva muitos a esquecerem que Cuba, por exemplo, que é um país muito pobre, está 43 posições acima do Brasil. O Uruguai, 16. E assim por diante. Sendo que é o Brasil – e não Cuba ou Uruguai – que conta com a maior economia industrial de toda a América Latina! Portanto, é quem mais produz riqueza na América Latina. E está entre os que pior distribui no mundo. Mesmo no reino das estatísticas, o Brasil é o campeão mundial da distância ricos-pobres, campeão da injustiça: 10 % de brasileiros mais ricos ostentam renda 51,3 vezes mais que os 10 % mais pobres. Dos 177 países pesquisados (pela ONU) o Brasil é o 10º pior do mundo em distribuição de renda. O emprego formal que cresce é de pior qualidade, é precarizado. O estudioso Mike Davis, em Planet of slums (planeta de favelas), denuncia este problema como mundial e o vincula ao da alta taxa de urbanização radicalmente desligada da industrialização e do desenvolvimento; isto é, favelização generalizada e proliferação do trabalho precário, atomizado, sem qualquer organização coletiva ou direito trabalhista envolvido (WISNIK, 2006).
 
 
Vem sendo noticiada a recuperação do mercado de trabalho brasileiro com a geração de milhões de vagas; no entanto, também foi noticiado (Correio Braziliense, 1/10/2007) que, de cada cem postos de trabalho com carteira assinada no país, são renovados por ano 44 deles. Em outras palavras: aumentou a rotatividade (era de 37 na década passada). As empresas não querem o trabalhador por muito tempo. (Outra coisa: foram criados empregos? E quantos se aposentaram nesse período? E quantos entraram, no mesmo período, na idade economicamente ativa?)

Apesar de tudo isso, ainda aparecem manchetes do tipo “O Brasil se formaliza” (Correio Braziliense, 29/2/2008), que festeja o dado fatiando-o, isolando-o da paisagem: dos 21, 3 milhões de pessoas ocupadas no país, 51,1 % (10,8 milhões) têm carteira assinada.

A escola é outro exemplo. O Brasil pôs mais cidadãos na escola (a taxa de matrícula de brasileiros de 6 a 22 anos cresceu de 85,7 % para 87,5 % de 2004 para 2005), no entanto quem não sabe que a escola e a faculdade brasileira pioraram além de terem se mercantilizado mais que antes? Será que o economista ou o estatístico que mora em Brasília colocaria seu filho em alguma escola pública de Santa Maria, Samambaia ou Paranoá? (Em bairros pobres como estes, verdadeiras favelas de alvenaria, vive a maior parte da população de Brasília, sendo que a maioria das escolas públicas da capital do Brasil são pouco mais que o horror e o apartheid organizado).

Estamos falando de qualidade. Vários testes têm demonstrado que a escolarização tem perdido em conteúdo e que o número de analfabetos funcionais não pára de crescer (a pessoa tem a escolaridade mas não tem o conhecimento correspondente...).
 
Favela em Belém (Pará)
Outro exemplo: as estatísticas registram incremento de renda do brasileiro; e também diminuição do número de cortiços. A partir deste registro, o governo e a mídia amestrada imediatamente espalham uma “boa” notícia (“há menos cortiços no Brasil”). Uma notícia que deixa de sublinhar o seguinte: a quantidade de moradores de favelas passou de 4,9 milhões (1992) a 7 milhões (2007), concentrados principalmente nas regiões metropolitanas do Rio e São Paulo. Mais de um terço da população vive em condições precárias (o que inclui favelas e outras formas de habitação precárias). Segundo avaliação da ONU, o Brasil é o país do mundo com mais pessoas vivendo em favelas, depois da Índia e da China. Falar de redução da pobreza ou “do número de cortiços” em um contexto social desses depõe contra o argumento e põe sob questão as intenções do especialista. Quem ouve não sabe se está diante de um especialista ou da figura de um mágico (“o Brasil é cada dia que passa um lugar melhor para se viver” parece discurso mágico ou ensandecido).

E pode-se questionar os próprios índices: “A única fonte para medir a redução da desigualdade é a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, que tem um grave problema: quem vive só de salário (ou de doações do governo) tende a declarar tudo o que ganha. [No entanto] quem, além da renda de sua atividade, recebe também juros de aplicações financeiras, tende a não declarar pelo menos parte do ganho. Estudo de economistas do Ipea demonstrou que 90 % desses rendimentos não são declarados. Conseqüência: aumentou a renda dos mais pobres (por causa das bolsas), que é totalmente declarada, mas aumenta igualmente a renda dos sem-bolsa mas com-juros, que é subdeclarada” (ROSSI: 2006, grifo nosso).

Outro exemplo que também pode ser citado vem de Marcelo Néri (Fundação Getúlio Vargas), um dos mais respeitados estudiosos do tema e entusiasta da redução da desigualdade, que disse à Folha (FSP 23/11/08): “As pesquisas não captam bem a renda os ricos e do capital em geral. Por isso, não acredito em estimativas de ricos no Brasil a partir de pesquisas domiciliares”.
 
Bairro do Benguí (Pará)

No mesmo jornal (de 23/11/08) Neri descreve um dado definitivo a respeito: “Fizemos um experimento no Censo e vimos que quem tem três carros ou mais no domicílio (sinal de riqueza aparente) tem quatro vezes mais chances de omitir a resposta de renda que quem não tem carro no domicílio, situação que corresponde a boa parte da população brasileira [...]. Neste sentido, a desigualdade brasileira, que já era muito alta, tende a ser mais alta ainda”. Ou seja, o Ipea e o IBGE não deixam claros os limites de suas pesquisas e vendem uma informação parcial e, por isso, de conteúdo duvidoso.

Ou seja: tais índices ou indicadores tão propagandeados pelo governo além de evidentemente não serem neutros também estão longe de serem exatos ou próximos da realidade. Outro exemplo nessa mesma direção é que, de repente, o Banco Mundial acaba de descobrir que “400 milhões de pessoas a mais do que se pensava vivem na pobreza”. Isso é mais do que a metade da população da África subsahariana! Isso reflete, sobretudo, a falta de fiabilidade das estatísticas publicadas pelo banco Mundial; estatísticas que servem, fundamentalmente, para avalizar as políticas neoliberais impostas por todo o mundo por seus próprios experts. Segundo seu comunicado: “1.400 bilhões de pessoas que vivem nos países em desenvolvimento (1 de cada 4), subsistiam com menos de 1,25 dólares diários em 2005”, enquanto que as estimativas anteriores giravam em torno a 1 bilhão de pessoas” (MILLET, TOUSSAINT, 2008).

Thomas Pogge, professor da Universidade de Columbia, escrevia recentemente: "Os sistemas de cálculo do banco Mundial são extremamente duvidosos. Há razões para pensar que com um sistema mais crível se observaria uma tendência mais negativa e uma pobreza muito mais estendida. [...] Enquanto o sistema atual do Banco Mundial e os dados que se baseiam nele conservem seu monopólio nas organizações internacionais e na investigação universitária sobre a pobreza, não se poderá abordar esse problema seriamente. O Banco Mundial tem demonstrado seu fracasso tanto no terreno estatístico quanto no político” (MILLET, TOUSSAINT, 2008, grifo nosso).

Um outro exemplo são críticas que têm surgido (por exemplo, da Campanha pelo Pleno Emprego, do Rio de Janeiro) a respeito dos cálculos oficiais do desemprego feitos pelo IBGE. Eles contribuiriam para mascarar o problema das taxas de desemprego, já que só consideram uma pessoa desempregada se a) ela estiver procurando emprego na semana da pesquisa, b) se ela estiver disponível para trabalhar imediatamente, c) e se não conseguir trabalhar nenhuma hora na última semana em qualquer atividade. Com essa metodologia se pode medir 12,4% de desemprego em São Paulo quando a taxa real, se fossem incluídos os informais, disfarçados, que pegam um bico ou algumas horas na semana passada etc, pularia para 19 ou 20%, por exemplo. No Piauí, pior ainda: a informalidade lá é brutal e se fosse incluída na contagem, teríamos mais de 50% da população desempregada!
Trabalho informal em Alagoas
 
Em poucas palavras, a abordagem dos economistas chapa-branca, de uma maneira geral, padece de dois problemas. Em primeiro lugar, tenta veicular uma parte da realidade ou das aparências como se fosse toda a realidade; dessa forma está dourando a pílula, confortando os explorados com a exploração e com migalhas e esmolas. Em segundo lugar, atribui sustentabilidade e perspectiva ao “combate à pobreza” por parte desse regime, do capitalismo.

Mas, sobretudo, “esquece” de considerar que, além de ser absolutamente desumano manter/aceitar – sem indignação – que milhões e milhões de trabalhadores desempregados vivam na base de meio, 1 ou 2 reais por dia (ao mesmo tempo em que não têm acesso decente e ágil a escolas, hospitais e transportes) é, também, completamente inaceitável que o trabalhador sem emprego passe a ganhar meio real a mais por dia ou coisa parecida para que os milionários e detentores do capital possam abocanhar bilhões de reais ou de dólares a mais! Em uma análise séria esta conexão teria que ser feita!

A análise dos especialistas em estatística do governo é mistificadora exatamente por isto: esconde a relação causa e efeito oculta o processo histórico de classe. Dessa forma, passa a vender ilusões, tenham eles ou não intenção política consciente nessa operação que mais obscurece do que revela.

Só no ano passado, o governo Lula remunerou com mais de 140 bilhões de reais de juros aos ricos especuladores que compraram bônus da dívida interna! E gastou bem menos com o Bolsa-família, para dar um exemplo. E extraiu um volume de riqueza muito maior dos pobres do que dos ricos através dos impostos! [7] Em outras palavras, independentemente de que um catador de papel ou algum operário sem emprego tenha passado a ganhar/receber meio real por dia a mais, o Brasil está entre as economias que mais transfere riqueza de baixo para cima.

Mais uma vez: não é “errado” dizer que em uma conjuntura ou outra a taxa de desemprego diminui ou que há mais gente no universo dos que conquistaram o “direito” de viver pelo menos com ¼ de real por dia. E tampouco existe qualquer heresia ou contra-senso em observar que essa economia – desigual, fundada na acumulação do capital –também tem suas conjunturas de crescimento, de recuperação econômica (portanto com geração de empregos e mais “inclusão social”).

Crescimento e crise, prosperidade episódica e recessão, eis o capitalismo em suas alternâncias que, em todo caso, desenham uma curva histórica declinante. E em uma ou outra fase de prosperidade – como o Brasil, enquanto durou a alta dos preços das matérias-primas lá fora e a oferta de crédito – as condições econômicas e sociais de uma parte da população pode melhorar e melhora. O problema não está aqui e sim, como sempre, na interpretação desse novo quadro, o que ele significa e o que ele promete para os trabalhadores.

Ignora-se, na divulgação ou valoração de dados da estatística social “positiva” ou da própria democracia vigente de fazer a pergunta essencial: tais avanços podem ameaçar de forma sustentada, duradoura, o direito do empresário a despedir, a contratar, o direito do banqueiro de empregar seus bilhões como quiser ou o império de um mercado de trabalho que não reduz a polarização social?

Com certeza, é absolutamente parcial e socialmente irresponsável passar em marcha batida e não procurar inserir os dados estatísticos otimistas ou “avanços” sociais no contexto, na totalidade, na dinâmica da reprodução da vida social.

E é justamente neste tipo de equívoco reducionista – altamente conveniente para a patronal e o governo seu representante – que incorrem mesmo economistas que antes eram críticos à política econômica do governo. Há poucos dias M. Pochmann, atual presidente do IPEA, declarou que a taxa de desemprego no Brasil caiu para 8,4% em 2006 e tende a cair pela metade disso até 2010 (4,2 %, algo parecido com os anos 80). Fiel ao seu passado mais combativo, reconheceu que, boa parte desses empregos, pertence ao universo da baixa remuneração e da pouca qualidade. Mas seguiu em marcha batida, engordando, acriticamente o coro dos que vêem um bom futuro para o emprego no Brasil capitalista.

Sua fotografia atual do Brasil em declaração para o jornal Valor Econômico é permeada de otimismo: destaca os 15,3 milhões de postos de trabalho criados entre 2001 e 2007, sendo dois terços com carteira assinada, e vê “cenário bem diferente” das décadas anteriores e a “retomada da mobilidade social ascendente para praticamente todos os estratos de renda, ainda que isso ocorra de forma diferenciada” (Valor Econômico 2/10/2008, p. 13). E isso foi dito em outubro do ano passado! Enquanto a crise norte-americana explodia e seus efeitos no mundo já se faziam sentir, nosso otimista por profissão era só bons augúrios.

Novamente, o problema desse raciocínio é que ele se apresenta como técnico ou neutro: um técnico poderia até dizer que “eu não entro nas implicações políticas ou ideológicas, só estou constatando uma evidência empírica, a da queda tendencial do desemprego! Minha avaliação é puramente técnica”.

Pois então cabem outras perguntas para este técnico: os empregos – que o próprio economista admite que são de má qualidade – vão crescer até se tornarem abundantes? Ou até deixarem de ser de má qualidade? O governo sinaliza com algo na política econômica que dê sustentabilidade a essa tendência boa de um bom futuro para o mundo do trabalhoOu exatamente ao contrário, todos os sinais que o governo emite são de submissão ao capital financeiro internacional, aos trustes internacionais, ao arrocho fiscal, ao gigantismo da dúvida pública à acumulação do capital em uma economia mundialmente marchando para a recessão?

Uma réplica puramente técnica poderá continuar argumentando: “não é problema meu, meu dever é mostrar a ´evidência empírica´: sabemos que este país historicamente vive na desigualdade e no desemprego, mas o desemprego atualmente está caindo, estamos diante de fatos”. Novamente reincide-se no reducionismo, na venda de ilusões políticas embaladas de tecnicalidades.

O reducionismo – já foi explicado - está na operação que leva a perder de vista o quadro econômico e social mais profundo e a dinâmica histórica de país dependente do capital financeiro e semi-colonial que vem sendo a marca do Brasil: o país do desemprego, subemprego, informalidade e precarização generalizados, com o governo procurando agravá-lo através de medidas que desconstroem direitos trabalhistas, previdenciários e pioram as condições de trabalho. Para salvar o capital, para tentar reduzir o efeito da crise sobre... os capitalistas! E as medidas financeiras? Estas concentram renda 24 horas por dia.

Tomando o processo no mais longo prazo, o argumento nos vem do próprio economista hoje presidente do IPEA: “A composição fundiária segue muito concentrada. O sistema tributário permanece regressivo, com a população pobre pagando mais impostos e os ricos quase incólumes. A estrutura social continua inadequada para garantir a universalidade e a qualidade dos equipamentos e serviços para toda a população. (...)

Desde o final da década de 1990, o Brasil vem transferindo anualmente de 5 a 8% de todo o Produto Interno Bruto na forma de sustentação da renda mínima para os ricos. De outro lado, ganhou maior dimensão, desde 2001, a difusão de programas de complementação de renda mínima para os segmentos miseráveis da população. A cada ano, menos de 0,5% do PIB nacional tem sido transferido para mais de 10 milhões de famílias que vivem em condições de extrema pobreza. Percebe-se, assim, que mesmo na esfera das políticas públicas, as resistências ao enfrentamento da desigual repartição da renda se fazem presentes” (POCHMANN, 2007).

O óbvio: se a concentração de renda em favor do capital é crescente, se a transferência de riqueza para o capital é, em termos absolutos e relativos, amplamente maior do que as migalhas para os mais pobres, não é mais do que necessário denunciar abertamente que não há a menor perspectiva para os trabalhadores e as famílias pobres enquanto dependerem desse sistema do capital? Por que alimentar (não-declaradamente) a ilusão ou a impressão de que esse governo conduz um programa econômico de lenta e sustentada melhoria social? Por que nutrir a ilusão de que agora, com Lula será diferente e o “social” irá para primeiro plano ou que o desemprego vai cair significativamente na “próxima” década? Por que alimentar a ilusão de que se trata basicamente de um problema de “gestão pública” ou de falta de “financiamento” adequado? Existe algo de miopia profunda nessa maneira de ver as coisas.

E mais: nem a conjuntura internacional de mercados para matérias-primas era auto-sustentável, como se vê agora, e nem políticas sociais focais para os mais pobres dos mais pobres resolvem coisa alguma do ponto de vista de renda, emprego, produção ou consumo. Persiste o mecanismo de reprodução estrutural de pobreza: em vez de ser erradicada – através do emprego, das frentes de trabalho – a pobreza fica encerrada em um movimento circular; 11 milhões de famílias vêem perpetuada sua pobreza com mesada de 62 reais em média por grupo familiar que será elevada para 74 em 2008 (MACHADO: 2007). A análise de Coggiola em capítulo subseqüente trata melhor deste ponto.

Aquilo que a política “social” do governo procura fazer é garantir a sobrevivência estritamente animal – não morrer de fome – à sua população escrava, à sua reserva escrava e precarizada de mão-de-obra. É isso que precisa ser mostrado.

Mesmo economistas conhecidos por serem notórios defensores da ordem entendem que tais políticas focais escondem um quadro lamentável e insustentável. Chama a atenção na população atendida pelo programa Bolsa-família – que já alcança ¼ da população brasileira – a presença de vários outros indicadores de pobreza e indigência. Baixa escolaridade, pouco acesso a saneamento básico (apenas 36,4 % das famílias beneficiadas pelo programa têm acesso a sistema de esgoto); 56,2 % dos titulares dos cartões do Bolsa-família não passou da 4ª série do ensino fundamental. Para fazer parte do Bolsa-família, a renda por pessoa da família tem que ser menor que 120 reais mensais. São 45,8 milhões de famílias nessa condição.

Este quadro, de 1 em cada 4 brasileiros terem sua renda melhorada, com o contingente de assistidos pelo Bolsa-família tendo crescido ano a ano, tem um ponto fraco: os mais pobres estão melhorando pelo Bolsa-família e outras políticas sociais, mas não pelo trabalho; trata-se muito mais de transferência pública do que de rendas do trabalho” (LEITÃO: 2007). Logo, o Bolsa-família não está construindo a porta de saída para a terrível realidade social brasileira, marcada pela precariedade e informalidade do trabalho, que crescem todos os dias.

Em 1990, o trabalho informal representava 30% das ocupações da Grande São Paulo, mas no ano 2000 já se atingia os 40% (BREVE, 2006). Em 2006, foram 3 milhões de ocupados na economia informal só em São Paulo capital. Estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostram que, desde os anos 90, com oscilações pequenas, metade da mão de obra brasileira está na informalidade (Gazeta Mercantil, Editorial, 12/8/06).

Altvater (2008) argumenta que “trabalho informal significa que as normas antigas que regulavam as relações trabalhistas já não valem mais (...). Na América Latina 30, 40 ou 50 % da população pertence ao setor informal”. Ele também denuncia uma outra esfera do trabalho “informal” que cresceu de forma gigantesca, o mercado mundial de atividades criminosas e que já abarca 20 % do comércio mundial. “A versão mais visível e conhecida é o narcotráfico, assim como o tráfico de armas, mas a lavagem de dinheiro e o tráfico de seres humanos também jogam um papel importante, assim como a adulteração de alimentos etc. Há muito já deixou de ser um setor marginal. Esse autor mostra que trata-se de todo um mundo de pessoas sem oportunidade no setor formal do trabalho.

O mundo do trabalho tende – neste sistema em crise mundial – a oscilar, mas sem sair do campo do desemprego, subemprego, precarização, desconstrução da qualidade de vida e dos direitos sociais, explosão da miséria da periferia das grandes cidades, da quantidade de vida como um todo.

O problema do Bolsa-família, nesta ótica, não advém fundamentalmente de ser assistencialista mas de representar uma tentativa política e eleitoreira de não resolver [8] efetivamente e, na verdade, empurrar para a frente a solução do gravíssimo problema do desemprego e da democratização da posse da terra [9], do apoio maciço ao pequeno produtor rural (objetivo que programas como o Pronaf, de crédito à família produtora, está longe de cobrir).

Se o objetivo fosse o de resolver, de fato, o problema da pobreza no campo, necessariamente isto deveria expressar-se na questão agrária: o que se vê é a polícia e os jagunços dos latifundiários torturando e matando camponeses impunemente. Não é possível separar as duas coisas. E nem as duas da outra, de fundo: o crescimento da desigualdade, do número de super-ricos; os ricos da América Latina estão enriquecendo mais rapidamente que seus pares de todas as demais regiões do mundo, com destaque no ranking para o Brasil.

Nos três anos mais recentes, os ricos latino-americanos viram suas fortunas aumentar 20,4 % e os norte-americanos em 4,4% (segundo Informe Mundial da Riqueza da Merrill-Lynch, de Andrés Oppenheimer). “O Brasil deveria parar de festejar lendas e misérias”, como bem argumenta ROSSI (2008).

Se não se quiser ir muito longe, basta avaliar como vem evoluindo o mundo dos aposentados, ou da previdência: só piorou. Do ponto de vista de quem trabalha, de quem se aposenta ou deveria poder aposentar-se, as regras para uma parca aposentadoria só pioraram. E nem vamos nos deter aqui no mundo dos horrores dos famigerados planos de saúde. É no mínimo indecente, neste caso, falar em “chegada da modernidade”, em redução progressiva do desemprego (quando cresce a terceirização e toda forma de emprego precarizado) ou em acesso a consumo disso ou daquilo como se o nível de vida e a qualidade de vida de quem vive do trabalho, de conjunto, esteja se elevando.

Considerações finais
É claro que todos temos que respeitar quando um desempregado encontra uma solução parcial e individual para não morrer à míngua, quando sai pela rua vendendo balinha, picolé pequenos objetos. No entanto – e aqui cabe ênfase – se trata apenas de trabalhadores se socorrendo de qualquer coisa para sobreviver, e que não encontram outra saída, muitos chegando a vender o próprio corpo ou ao lamentável extremo de virar aviões de traficantes. Ou o caso de camelôs, perueiros, vendedores de semáforo, sacoleiros, motoqueiros, mulheres de rua, catadores de lixo ou pequenos artesões, sobrevivendo no limite.

No entanto – este é o fundo do problema – nada disso, e sequer qualquer programa focal-assistencialista, representa um projeto de país, nada disso soluciona o grande quadro social que aqui está sendo tratado. Nada disso tem a ver com humanos tratados como humanos. Um economista da Unicamp (Anselmo dos Santos), referindo-se ao Brasil do Lula, foi no ponto ao argumentar que houve perda dos melhores empregos, e expressiva tendência à deterioração no mundo do trabalho, mesmo quando o emprego formal cresce. Viramos uma sociedade de serviçais (BREVE, 2004).

E nada disso justifica encobrir o próprio quadro social mais grave com a peneira da estatística da melhora aqui e da melhora acolá. E pior ainda quando o especialista em números e contabilidade social procura, objetivamente, colocar-se em uma perspectiva de vender ilusões históricas.

São técnicos que, alguns até, admitem, por exemplo, a crescente concentração de renda no Brasil, mesmo na era do Bolsa-família, mas indagados sobre a saída, a solução e a explicação do problema, refugiam-se na vala comum da confiança na “democracia burguesa”. Fotografam acertadamente a situação: “assim como a renda e a riqueza, o poder no Brasil encontra-se extremamente concentrado”. Sem reformas e sem revolução – chegam alguns a admitir – não há como alterar o “padrão distributivo”. Mas, invariavelmente, e na melhor das hipóteses, só apontam uma saída: mais democracia, ou seja, “consolidar” a democracia, a politicagem parlamentar, para que ocorram as reformas. Esta é a perspectiva, por exemplo , dos Pochmann. 
A inversão lógica de quem imagina, utopicamente, a burguesia distribuindo renda e democratizando, de fato, o Brasil é a de ocultar o dado histórico de que é a concentração econômica – e o domínio imperialista-burguês – que estão na raiz do problema e não o contrário. É mais ou menos como fotografar que a “massa salarial vem tendo crescimento real” (Correio Braziliense 23/11/07) e deixar de ver a totalidade, o movimento histórico: vem caindo o peso da renda do trabalho na riqueza nacional. Os salários abarcavam 56,6 % da renda nacional em 1959/60 e em 2005 esta porcentagem gira em torno dos 39 %. Os ganhos financeiros crescem superando largamente o rendimento dos trabalhadores, mesmo quando estes, em um ou outro setor, eventualmente, “cresçam”.

Em outros termos: a própria “fragilidade democrática” traduz uma incapacidade histórica econômica de burguesias como a brasileira. Não se trata de falta de reformas (agrária, nacional etc) como se um dia elas pudessem vir, quem sabe pelo voto. E nem de aperfeiçoamento do parlamento que, no capitalismo, é necessariamente plutocrático. Mas de incapacidade histórica de uma burguesia – jamais será demasiado reiterar - que não passa de sócio de segunda classe do imperialismo e dele depende política e militarmente.
Não é um problema de “falta” de reformas para seguir outro padrão que não o da “perversão distributiva”. 

O “país dos desiguais” continuará sendo esta pirâmide anti-social enquanto a burguesia local e seu sócio maior, o imperialismo, continuarem à frente da economia. A bobagem de sempre dos tecnocratas não necessariamente sem formação marxista revolucionária é a de sonhar que as reformas sociais um dia realizadas nas metrópoles imperialistas – aliás, reformas atualmente em crise e desmanche, como se sabe – sejam factíveis nas semi-colônias que sustentam os juros, as rendas e a apropriação de riqueza metropolitana e dos seus sócios nativos. No total, apenas 5 mil famílias no Brasil se apropriam de 45 % de toda a renda e riqueza nacionais. Será que esta elite burguesa vai aceitar reformas? Será que não vai resistir violentamente a qualquer tentativa de barrar seus privilégios?

Em síntese: a ilusão dos tecnocratas e sacerdotes das estatísticas da miséria é a de crer que aqueles que desfrutam do monopólio do poder econômico em algum momento irão ceder na democracia para os trabalhadores e na justiça distributiva. Reiterando: mesmo os especialistas que enxergam concentração de renda, terminam acreditando que essa burguesia colada inexoravelmente ao imperialismo pode ir além, na democracia liberal (ditadura do capital) e concluir a revolução burguesa jamais completada, atingindo, por fim, a reforma agrária e alguma equidade na distribuição de renda, algum mercado interno expandido.

Bons em econometria e contabilidade da pobreza, em contabilizar uma árvore ou outra, são ainda melhores em ocultar a floresta do que na contabilidade das árvores: deixam de ver a economia internacional – da qual o Brasil é parte – como uma totalidade “governada” pela ditadura dos oligopólios financeiros, industriais e comerciais (em outro momento devidamente qualificado como imperialismo).

Em síntese, o grande mal causado pelas estatísticas que mistificam e ocultam o essencial – além, naturalmente de não ajudarem na compreensão do processo social em marcha – é o de que alimentam, na própria classe trabalhadora, seu voto de confiança no governo dos banqueiros e da patronal que está afundando o povo e a Nação, tudo em nome do “povo pobre” e com apoio da burocracia sindical associada ao governo (da CUT e da Força Sindical, por exemplo).

Para além dessas estatísticas da miséria–que–vai–melhorar, não há um só motivo para dar o menor voto de confiança a um governo que já teve todo tempo que precisava para aplicar seu mega-superávit fiscal e de divisas na geração maciça de empregos, tirar educação e saúde pública do atoleiro e, no entanto, não fez mais do que a política da migalha, da esmola, da precarização dos direitos sociais, tudo isso que a miséria da estatística procura esconder, parcializar e mistificar.

Ao mesmo tempo, para além do debate e da denúncia das políticas focais que despistam e desviam dos graves problemas sociais brasileiros, é de primeira importância promover o debate nacional, sobretudo entre os trabalhadores – os que serão mais vitimados pela crise que se arma no horizonte – em torno de um programa de lutas.

Um programa de lutas defensivas mas, ao mesmo tempo, cada vez mais ofensivo e de massas. Em defesa do salário mínimo do Dieese; contra o desemprego, lutar para trabalhar menos para que todos trabalhem: divisão de horas de trabalho entre todos os empregados e desempregados, redução da jornada sem redução do salário; fábrica que ameace fechar ou demitir em massa, ocupar e exigir que seja entregue aos trabalhadores para produzir (na perspectiva de sua estatização); não aceitar nenhuma demissão e lutar pelo fim do trabalho precário, terceirizado: contratação de todos com direitos iguais; contra a carestia: reajuste mensal automático do salário de acordo com o aumento do custo de vida; para dispor de recursos para aplicar no social, para garantir escola e saúde públicas e gratuitas para todos: não ao pagamento da dívida pública interna e externa, nacionalização sem indenização dos bancos sob controle dos trabalhadores; reestatização dos serviços e empresas privatizados, seu controle democrático pelos trabalhadores e usuários; e contra a fuga de capitais e especulação: monopólio estatal do comércio exterior.

Notas

[1] Estes setores citados não são casuais: são representativos dos nichos onde o capitalismo pôde desenvolver as bolhas de crescimento que agora estouram na crise. 



[2] As políticas focais, propostas pelo Banco Mundial, são voltadas para setores determinados da população pobre e perdem seu caráter universal, voltado para toda a população. São parte essencial da guinada neoliberal no mundo capitalista.

[3] Como diz o Fausto Wolff, a suposta causa socialista do PT foi transformada em nojenta caridade (JB de 21/10/07) “Já temos a maior carga fiscal do mundo, já temos a maior desigualdade social do mundo, mais de 40 milhões dos nossos cidadãos vivem com menos de R$ 1,00 por mês (...). Dos R$ 40 bilhões do CPMF, nem 3 % foi para a saúde. (...) Cinco anos de PT e (...) não foi tomada uma medida de benfeitoria social. Essa vergonha que está no Planalto limitou-se a dar esmolas para os miseráveis e milhões de reais para os políticos obedientes” (WOLFF: 2007b). O autor prossegue, argumentando, que o programa de governo do sr. Luiz Silva “só tem dois tópicos: bolsa de comida para os miseráveis que acreditam em tudo e bolsa de ouro para os ricos que seguem qualquer ideário desde que mantenham o poder e o lucro” (WOLFF: 2007c). 

[4] O curioso neste caso é a existência de correntes do campo da esquerda que, ignorando toda essa estrutura social e econômica desigual chegam a imaginar o Brasil como um país “avançado” e “sem entraves pré-capitalistas”, quando, na verdade, por todos os poros da estrutura brasileira transparece a modernidade capitalista associada a um perfil de semi-colônia ou país dependente. 

[5] Ou mesmo desde antes, quando o tão louvado e quase canonizado Josué de Castro (autor de Geografia da Fome) situava o combate à fome dentro dos marcos da economia capitalista, em que pese toda sua sincera indignação e seu engajamento de toda uma vida no combate puramente reformista – como também obviamente o do Betinho - à miséria social brasileira. 

[6] As rebeliões populares contra o preço dos alimentos, contra a fome que pipocaram no ano passado são pequena amostra disso. Assim como a barbárie das mortes na Indonésia em setembro do ano passado. A notícia, do dia 15/09/2008 assim versava: “Pelo menos 23 pessoas morreram nesta segunda-feira (15) e dezenas ficaram feridas na Indonésia durante um tumulto em uma fila em que se entregavam doações em dinheiros para pobres. O costume é tradicional no Ramadã, o mês sagrado dos muçulmanos. O acidente ocorreu na cidade de Pasuruan, na ilha de Java, depois que Haji Syaikhon, membro de uma família rica, prometeu o equivalente a cerca de US$ 4 (cerca de R$ 7) a todos que passassem por sua casa. Pelo menos 10 mil pessoas se aglomeraram no lugar no momento da confusão, na sua maioria vindos de povoados próximos”. Este é o “estado do mundo”, a bomba-relógio da miséria social. 

[7] No Brasil predomina a tributação indireta (embutida nos preços dos produtos e serviços) sobre a direta (proporcional à renda e à riqueza). Uma distorção que termina fazendo os pobres pagarem mais impostos. Milionários e pobres são tratados ´igualitariamente´: pagam o mesmo imposto sobre a manteiga, por exemplo . 

[8] Com o aumento mundial do preço dos alimentos, sem reforma agrária e com a crise econômica capitalista o avanço no consumo de calorias propiciado pelo Bolsa-família corre sério risco. 

[9] Os dados do INCRA revelam uma concentração de terras no Brasil praticamente inalterada desde 1967 (o índice que mede concentração de terras, Gini, oscilou de 0,831 a 0,854 nos últimos 30 anos). 



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